É provável que você esteja lendo esse artigo usando tecnologia LCD sem saber ou se dar conta do longo caminho que a trouxe até aqui. Seja em monitores de computador, televisores, relógios digitais ou telas de dispositivos móveis, o visor de cristal líquido, ou Liquid Crystal Display, foi uma inovação que poderia ter acontecido uma ou duas décadas antes do tempo, mas que permaneceu perdida na História.
Se hoje temos a opção de telas de LED, mais vantajosas em vários pontos, o LCD foi um salto gigantesco em relação aos tubos catódicos anteriores e um salto que a norte-americana RCA poderia ter efetuado nos anos 70. Seu pioneirismo foi entregue de bandeja para empresas europeias e principalmente japonesas por uma combinação frustrante de falta de visão comercial, mal gerenciamento de pessoal e puro e simples desinteresse.
A origem da tecnologia
Por incrível que pareça, o princípio das telas de cristal líquido foi descoberto no século XIX, muito antes do primeiro televisor. Mais especificamente em 1888, quando o botânico Friedrich Reinitzer, da Charles University, em Praga (atual capital da República Checa), investigava compostos químicos derivados da cenoura.
Um destes compostos, o Benzoato de Colesterol, continha propriedades químicas singulares: ele apresentava dois pontos de ebulição diferentes. Em um deles, a substância tinha um aspecto nebuloso e em outro ele se tornava translúcido. Intrigado, Reinitzer enviou seus resultados para o químico alemão Otto Lehmann, que constatou que o composto em um estado de fluidez simultâneo a características de cristal, como a capacidade de refratar luz. Em outras palavras, era organizado demais para ser um líquido, mas também não era exatamente sólido. Tinha-se descoberto o cristal líquido.
Nas décadas que se seguiram, foram descobertas mais de 200 substâncias que receberam a classificação de cristal líquido. Entretanto, elas eram pouco mais que curiosidades de laboratório, sem nenhuma aplicação prática aparente e assim permaneceriam por quase um século.
Chegamos aos anos 60 do século XX e a empresa norte-americana Radio Corporation of America (RCA) era um gigante da produção de televisores, o artigo eletrônico mais cobiçado de todos os lares. Televisores coloridos estavam começando a pagar uma década de investimento em pesquisa para a empresa e a RCA já estava de olho na tecnologia que substituiria os ancestrais tubos catódicos para a geração de imagens. Mas nem inicialmente, nem posteriormente, se apostou nos cristais líquidos como seus substitutos.
Em 1962, nas instalações de pesquisa avançada de Princeton da RCA, o químico Richard Williams analisava o efeito de descargas elétricas sobre os cristais líquidos e como isso alterava sua opacidade. Seus experimentos seriam o ponto de partida para a estrutura adotada até hoje em visores LCD: duas camadas de lâminas de vidro, seladas e separadas por um cristal líquido, cujas propriedades ópticas poderiam ser alteradas eletricamente. Embora a tecnologia tenha evoluído muito desde então, o princípio permanece intacto e foi patenteado mais de cinquenta anos atrás pela RCA.
Entretanto, a “tela” de Williams tinha um problema: precisava ser mantida aquecida a 117° C, uma condição difícil de ser obtida no dia a dia.
Coube ao engenheiro elétrico George Heilmeier, com apenas 28 anos, a honra de se tornar o pai do LCD, ao resolver o problema da temperatura ambiente ao mesmo tempo que descobriu como alterar a exibição de cores dentro do cristal líquido, permitindo assim a geração de imagens entre as camadas. Ele passaria quase uma década tentando convencer os alto-executivos da RCA que aquele era o futuro.
Força-Tarefa LCD
Durante esse período, o engenheiro Richard Klein, da divisão de semicondutores da RCA, foi fundamental para concretizar aquela ideia. Ele lembra claramente do momento em que foi recrutado para o projeto, em 1967, após ter sido conduzido até uma saleta de laboratório em Princeton, sem nenhum aviso prévio sobre o que veria. Sobre uma mesa havia um pedaço aparentemente inofensivo de vidro ligado a um aparelho elétrico. Quando Heilmeier ligou o dispositivo e uma imagem em preto e branco apareceu no vidro, Klein conta que quase caiu para trás.
Heilmeier e seu vidro mágico
Coube a Klein avaliar as possibilidades de produção industrial da nova tecnologia, uma tarefa à qual ele se dedicaria com afinco. Um ano depois, a equipe encarregada do projeto tinha dobrado de tamanho e as possibilidades do LCD eram alardeadas com pompa e circunstância para a imprensa. O próprio vice-presidente da RCA, James Hillier, previa um futuro onde televisores de tela portáteis poderiam ser até mesmo levados para a praia.
Nos bastidores do laboratório, a equipe já havia estabilizado o processo a um nível de temperatura ambiente e já tinha protótipos de relógios de pulso digitais e até um cockpit de aeronave usando o novo tipo de tela. O baixíssimo consumo de energia do LCD permitia miniaturizar a tecnologia e aplicá-la em diferentes soluções.
Enquanto isso, Klein otimizava os processos de produção para fabricação em escala industrial, reduzindo custos e preparando terreno para uma eventual aplicação comercial. Um ano depois, a divisão dedicada ao LCD ganharia seu espaço próprio dentro da RCA, mudando-se para um armazém em Raritan, Nova Jérsei, onde havia o espaço necessário para começar uma linha de produção.
Tudo parecia estar se encaminhando para um despertar antecipado da tecnologia, mas não era o que realmente acontecia. Os executivos da sede em Nova York continuavam desconfiados do potencial do LCD e tomaram duas decisões que emperrariam o projeto para sempre: a equipe precisava de um novo gerente e tinha que se financiar com recursos externos.
Apagar das luzes
Para o comando da força-tarefa foi designado o gerente Norman Freedman. O alto escalão da RCA não estava contente com a forma como o laboratório estava sendo administrado e acreditava que um gerenciamento mais rígido dentro das normas seria uma solução para melhorar a eficiência e os resultados do time.
Embora Freedman tivesse experiência dentro da empresa, tendo sido um dos responsáveis por estabelecer a linha de produção dos primeiros tubos de televisão colorida, ele também tinha a fama de ser intransigente e era odiado por outros gerentes.
Uma das primeiras regras que ele impôs à equipe de desenvolvimento era proibir sua interação com a divisão de semicondutores. A equipe responsável pelo LCD deveria ser independente mas, naquela etapa do projeto, era fundamental essa troca de ideias. Segundo Klein, a equipe tentava ignorar as ordens explícitas de Freedman e agia por baixo dos panos, mas o pessoal dos laboratórios de semicondutores também tinha ordens de não colaborar mais, porque seus gerentes detestavam Freedman. Na disputa tola entre departamentos, a tecnologia estagnava.
Freedman também trouxe profissionais de fora e os promovia dentro do projeto, desqualificando desenvolvedores que já estavam lá desde o início. Com o tempo, passou a ignorar os veteranos do antigo laboratório de Princeton.
Sem o financiamento da RCA, a equipe buscou contratos externos para aplicar sua tecnologia embrionária. Um destes primeiros clientes foi a empresa de relações públicas Ashley-Butler, que ofereceu 100 mil dólares para a criação de um painel de exibição de propagandas para remédios e bebidas.
A falta de credibilidade dentro da própria RCA e o comando de Freedman levaram à saída de Heilmeier e outros pesquisadores de longa data do projeto. Inicialmente, o “pai do LCD” fundaria uma startup para continuar seus estudos no campo, mas em 1971 abriria mão de tudo para iniciar uma nova carreira como consultor na Casa Branca. Terminaria no Departamento de Defesa dos Estados Unidos, onde ajudaria a desenvolver o chamado “bombardeiro invisível”.
Sem seu principal criador e com um time reduzido à metade após outras desistências, a equipe de LCD ainda seria atingida por um golpe fulminante que ninguém poderia imaginar: a RCA investiria todas as sua fichas em computação.
Embora a empresa tivesse uma divisão de mainframes desde os anos 50, a ordem agora era priorizar sua produção e pesquisa para se tornar a segunda maior fabricante do país, ficando atrás somente da então hegemônica IBM. Metade da equipe de pesquisadores de Princeton foi alocada para essa meta e todos os projetos paralelos foram colocados na geladeira até segunda ordem.
Foi tudo em vão e em 1971 a RCA vendeu sua divisão de computadores, após sofrer um prejuízo calculado em torno de quase meio bilhão de dólares, a maior perda já registrada por uma empresa norte-americana até então.
Para levantar seus negócios, a RCA passou um pente fino em todas as suas operações, cortando custos e pessoal. A equipe do LCD em Raritan foi reduzida a seis funcionários após uma série de demissões. Freedman, o gerente linha-dura, foi mantido em sua posição. Klein, o último grande incentivador da tecnologia ainda existente, foi mandado embora e arranjou uma vaga na mesma Ashley-Butler para qual havia sido desenvolvida a tela de publicidade de cristal líquido.
O sonho de alavancar um mercado emergente havia morrido.
Ninguém pode parar a tecnologia
No começo dos anos 70, a tecnologia do LCD já não estava mais nas mãos da RCA. Ex-funcionários estavam abrindo empresas por todos os cantos do país e a tecnologia começava a se tornar mais conhecida, abrindo caminho para eventuais contratos. A RCA até tentou capitalizar em cima do crescimento, sob o comando de Freedman e o time que restou em Raritan, mas acabaria vendendo toda sua divisão para a Timex em 1976.
Ironicamente, para a Timex, era uma oportunidade de impulsionar o desenvolvimento de relógios digitais, um produto no qual Klein e Heilmeier acreditavam, mas não tinham obtido o aval da direção da RCA. A maior fabricante de relógios dos Estados Unidos entrou em nova era graças à tecnologia que a RCA rejeitou.
O pioneirismo de Heilmeier, Klein e associados semearia frutos do outro lado do planeta e seria o ponto de partida para uma revolução. Enquanto a RCA se concentrava no comércio de televisores, negociou a aquisição de acordos de licenciamento de tecnologia com fabricantes europeus e japoneses, que também se interessaram pelo que estava sendo desenvolvido nos laboratórios do time de LCD. Contrariando as objeções de seus próprios pesquisadores, a RCA não via problema algum em abrir suas portas para os industriais de empresas como Sharp, Seiko e Sony, desde que essas visitas e demonstrações do LCD ajudassem na venda de licenças relacionadas a televisores.
Em pouco tempo, os fabricantes orientais e europeus invadiram o mercado norte-americano de rádio e TV. No final dos anos 70 haviam dominado o mercado de LCD. Atualmente, a indústria do LCD pertence quase integralmente a gigantes do Japão, Coreia do Sul e Taiwan.
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